quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Entre o Mar e os Abadás

Entre o Mar e os Abadás1

Da Restinga a Salvador

Quarta -Feira de Cinzas

Nesta quarta-feira de cinzas de 2012, felicito o POVO e a ESTADO MAIOR DA RESTINGA, a BI CAMPEÃ do Carnaval de Porto Alegre.
Durante o ano letivo, passo a maior parte dos dias na Restinga, na Vila Castelo, estou diretora da Escola Municipal Mário Quintana. Tenho muito orgulho de ser parceira desta comunidade que luta diariamente para sobreviver. Quem mora na Ocupação Mário Quintana é guerreiro(a). Viver sem banheiro, rodeados(as) de lixo e acompanhados(as) por ratazanas, é uma dura realidade.
Inicio escrevendo sobre nossa realidade local, que tem muitas coisas semelhantes com a vida dos(as) soteropolitanos(as) que conheci em Salvador nos dias que passei lá.
Nossa Restinga é eminentemente NEGRA, forte, cheia de Axé, cultura, resistência, personalidades que fizeram e fazem a história de Porto Alegre, do RS e do Brasil, batalhadores(as) incansáveis que a cada dia buscam um futuro melhor para suas famílias e a comunidade em geral.
Andando pelas ruas de Salvador, me encanto com a beleza da paisagem e a presença NEGRA. As pessoas, a história, a cultura, as marcas da resistência de um povo que tem fibra, que não dobra a espinha, que levanta a cabeça, que solta o cabelo, que tem orgulho, que tem beleza, e nos ensina a cada momento o quanto precisamos jogar fora o nosso racismo.

Leitura de Férias

Durante a viagem escolhi um livro para me acompanhar e eis que me deparei com mais um do Eduardo Galeano: De pernas pro ar – A Escola do Mundo ao Avesso.
Comecei a compreender que minhas férias iriam “bombar”, e tudo que faço durante o ano, que é estar DE OLHO de como o povo está sendo tratado em Porto Alegre, a qualidade da Educação, saúde, a falta de segurança, os investimentos do Governo Municipal nos bairros centrais, esquecendo a falta de politicas públicas e infra-estrutura dos bairros das periferias, o racismo, o machismo, a lesbo/homo/transfobia, enfim, a inversão de prioridades e desmandos que sofremos cotidianamente, seriam pauta também das minhas férias.
Preciso compartilhar alguns trechos de Galeano, que considerei interessantes para ilustrar o que trago em minhas reflexões.

“Desde os tempos da conquista e da escravidão, aos índios e aos negros foram roubados os braços e as terras, a força de trabalho e a riqueza: e também a palavra e a memória. No Rio da Prata, quilombo significa bordel, caos, desordem, degradação, mas esta expressão Africana, no idioma banto, quer dizer campo de iniciação. No Brasil, quilombos foram espaços de liberdade fundados selva adentro pelos escravos fugitivos. Alguns desses santuários resistiram durante muito tempo”...

Considero a Restinga um grande quilombo, que foi inventado inicialmente a mais de 30 anos para higienizar a cidade, uma politica podre da época que resolveu jogar a população em sua maioria negra, num lugar bem distante, onde não tinha nada. E do nada, o povo se organizou, lutou, gritou, trabalhou e construiu um grande bairro.

“TINGA TEU POVO TE AMA”...

A greve dos policiais militares de Salvador

Por falar em “bombar”, justamente no momento da greve dos policiais militares da Bahia, eu estava lá. A força nacional garantiu a segurança dos(as) turistas nas praias e nos locais de referência para compras e passeios, como o Mercado Modelo e o Centro Histórico. Então, eu estava “protegida”, mas resolvi conversar com as trabalhadoras.
Mulheres Negras que vendem queijo coalho, roupas, alugam sombreiros e cadeiras, fazem acarajé, abará, arte em cabelos, pulseiras, vendem fitas do Senhor do Bomfim, lavam os pés dos(as) turistas e moram nas comunidades das periferias de Salvador.

Dona Fátima, trabalha num ponto onde se alugam sombreiros e cadeiras na praia do Farol da Barra: “ É moça, tão matando muita gente lá no morro. É para ajustar contas, limpar um pouco a área”...

Busquei alguns dados sobre as mortes neste periodo. Aconteceram 109 homicídios registrados nos 10 primeiros dias de greve. 100 mortes foram com arma de fogo, 06 mortes com faca, 02 linchamentos e uma carbonização. 98 mortos foram homens e 11 mulheres. 42 mortos com até 29 anos, 59 levaram tiros na cabeça.41 tiveram indícios de acerto de contas, 26 matadores em comboio e 12 homicios em chacinas. 99 mortes foi nos bairros de periferia e 10 nos bairros de classe média/alta.
Para finalizar este parágrafo mais um dado assustador, algumas vítimas tinham sinais de tortura, vários corpos foram encontrados em lugares ermos e algemados.

Logo depois que a greve acabou, conversei com Dona Maria, vendedora de acarajé, ela me afirmou: “ Eles agora vão bater mais nos nossos meninos, para descontar os dias parados .Lá no morro eles só entram pra isso, ninguém faz nossa segurança”.

As policias militares precisam se humanizar, pois tanto em Salvador, quanto na Restinga, alguns policiais sofrem de racismo crônico, e abordam sempre primeiro os(as) jovens negros(as), e já chegam batendo e muitas vezes matando.
Todos os setores da sociedade devem receber formação em seus cursos, para prestarem seus serviços para a população de maneira respeitosa, sem qualquer tipo de preconceito ou violência. E aqueles que cometem crimes, batem, matam e abusam de seu poder, devem ser punidos(as).

Enfim, o Carnaval

Acompanhei a transformação de Salvador nos preparativos para o Carnaval. Estava no bairro da Ondina, e todos os dias caminhava 8 quilômetros para chegar no Farol da Barra. Belo exercício e observações.
A cada dia o ferro e a madeira foi tomando conta das fachadas dos edifícios, hotéis, bancos, lojas, farmácias, praças, muros da beira da praia, enfim, tudo vira camarote. O público vira privado, e mais uma vez a mesma constatação: Homens negros da construção civil levantando palanques enormes, gigantescos, deslumbrantes, apoteóticos, que serão usados pelos patrocinadores e por pessoas que vão pagar muito para aparecer ao lado de artistas famosos(as) que por sua vez também convidam ricos(as) e famosos(as) para mostrar sua popularidade e poder.

Li um artigo do pesquisador Milton Moura, Pós-Doutor da UFBA, que comenta: “Não estudo mais o carnaval de hoje, mas me parece muito interessante. Nesse artigo, quando digo “geografia política do carnaval de Salvador”, me refiro ao fato de que algumas áreas são guardadas para as pessoas mais claras, mais estudadas, mais ricas e outras são permitidas às pessoas menos estudadas, mais escuras e mais pobres. Isso de modo geral. De vez em quando, acontecem rearrumações nesse quadro”.

Neste contexto, menos da metade dos(as) soteropolitanos(as) vão para as ruas, assistem o carnaval pela televisão, e como afirma Milton Moura: “Só que sempre, em qualquer situação, as camadas populares sabem aproveitar as ocasiões dessas festas para exercer politicamente o direito de brincar. Nada mais politico que lutar pelo direito de brincar”.
A luta de classes é nítida também no carnaval, estando em Salvador ou olhando na telinha, observa-se a branquitude dos camarotes e a autoridade dos cordeiros, delimitando quem está dentro e quem está fora.
Daniela Mercury, Chiclete com Banana, Saulo Fernandes, Carlinhos Brown e Tuca Fernandes resolveram baixar as cordas, graças a poderosos patrocínios.
Os abadás são o uniforme da folia, e são muito cobiçados, existem inclusive algumas instruções de segurança, para que não sejam roubados.
Que loucura!Como diz Galeano, está tudo de pernas para o ar, veja as instruções: Coloque seu abadá em uma sacola discreta, não converse em público sobre sua aquisição, prefira ir de carro e com um motorista conhecido, se for de ônibus tenha a sacola sempre junto a seu corpo e se perceber que está sendo seguido desembarque e procure o policial militar mais próximo e por fim, pegue o abadá e siga para casa, sem desviar o caminho.
Uma festa onde deveríamos curtir, brincar, namorar, cantar, pular, ser feliz...
Como?
Somos portadores(as) de um objeto valioso, restrito, exclusivo para quem pode pagar muito para vesti-lo.
Existe um abismo entre o Mar e os Abadás...
O mar é de todos(as), é do povo, é lindo, é majestoso, é público, acolhe todas as pessoas que quiserem se banhar na Bahia de todos(as) os(as) santos(as).
Os abadás excluem, demarcam as diferenças sociais, acolhem só alguns, privatizam uma festa popular onde a classe social e cor da pele não deveriam estar em destaque.
Quero voltar muitas à Salvador, e sonho com dias mais felizes:
Sem violências
Sem racismo
Sem opressão de classes sociais
Sem segregação
Sem mortes
Com alegria
Com igualdade de oportunidades
Com trabalho digno e remuneração justamente
Com moradias descentes para todos(as)
Com o povo ocupando as ruas todos os dias e no carnaval


Dedico este texto a ZANI, vendedora de queijo coalho. Uma mulher guerreira, negra, lésbica, que trabalha todos os dias nas praias de Salvador.
Vou escrever um texto sobre sua história.
Aguardem!!!

2 comentários:

  1. Silvana,

    Parabéns pelo Blog, jé está claro que ele contribuirá e muito na luta contra todo e qualquer discriminação, seja bem vinda a blogosfera.

    Pode me passar a referência do artigo do Milton Moura?

    Um abraço

    Saudações

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  2. Olá, querido!
    Resolvi ser blogueira, justamente para amplificar as nossas vozes. Precisamos estar em todos os lugares para combater todas as fobias e preconceitos.
    O artigo chama-se: "A baianidade acabou".
    Li na revista A Tarde, uma revista semanal de Salvador.
    Bj

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